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No início deste ano, o governo federal anunciou que adotaria uma nova abordagem para tentar virar o jogo na crise humanitária na Terra Indígena (TI) Yanomami, em Roraima. Passados quatro meses, indigenistas, indígenas e profissionais da saúde ouvidos pela Agência Pública manifestam preocupação sobre o plano de atendimento à saúde traçado pelo governo para o território.
O temor é que mais um ano se passe sem mudanças significativas no cenário que se agravou durante os anos do governo de Jair Bolsonaro (2019-2022), período em que a invasão garimpeira explodiu no território junto com a desnutrição, a malária e a mortalidade por causas evitáveis.
Em 9 de janeiro passado, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva reuniu alguns de seus principais ministros no Palácio do Planalto e cobrou uma resposta à crise na TI Yanomami. O presidente ficou contrariado ao receber a informação de que, passado um ano da emergência declarada pelo Ministério da Saúde em janeiro de 2023 junto com a operação de combate aos garimpos ilegais, por ele próprio ordenada, o patamar dos óbitos e a presença dos garimpeiros ainda se mantinham em altos níveis no território.
Ao longo de 2023, morreram 363 Yanomami, um aumento de 6% em relação a 2022, quando foram notificadas 343 mortes. Em resposta às críticas sobre o elevado número de óbitos, o Ministério da Saúde argumentou que o número de 2022 está subdimensionado devido à “precarização da estrutura dos serviços e sistemas de saúde indígena”, ou seja, teria ocorrido um “apagão” no sistema de coleta de informações e de sistematização de dados da saúde durante o governo Bolsonaro.
É certo que havia um descontrole total dentro do território, com garimpeiros promovendo até tiroteios contra aldeias. Daí a impossibilidade, conforme diz o governo, de comparar diretamente os números de mortes nos últimos dois anos.
O fato é que o governo partiu para a nova estratégia. Na reunião de janeiro, Lula disse que o tema Yanomami passaria a ser “questão de Estado”, autorizou gastos superiores a R$ 1 bilhão para o ano de 2024 e anunciou a criação, em Boa Vista (RR), de uma “Casa de Governo permanente” com a atribuição principal de coordenar e acompanhar os trabalhos de expulsão dos garimpeiros da TI Yanomami.
Em fevereiro, a Casa de Governo entrou em operação, com o foco maior nas ações de retirada dos invasores, ponto fundamental também para a melhoria do atendimento à saúde. A Pública apurou que o governo trabalha com o número de 7 mil garimpeiros ilegais ainda dentro do território.
Após a ativação da Casa, as operações para expulsão dos invasores passaram a se tornar mais frequentes e efetivas, de acordo com lideranças Yanomami ouvidas pela Pública, inclusive com maior participação das Forças Armadas, que haviam sabotado, em pelo menos cinco momentos, iniciativas civis do governo, conforme já escrevi nesta coluna.
Na divisão das atribuições, o Ministério da Saúde permaneceu, por meio da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), com as tarefas de coordenação, planejamento e execução dos serviços de saúde. No campo da saúde, surgem grandes dúvidas.
Em abril, durante entrevista coletiva no Palácio do Planalto e em resposta a uma pergunta da Pública, a ministra da Saúde, Nísia Trindade, disse que sua pasta não está incluída no pacote do R$ 1 bilhão porque não foi necessário: o orçamento do ministério para 2024 já havia sido aumentado, por ordem de Lula, na virada do ano. A Saúde disse que mobiliza, desde o ano passado, 1.058 profissionais da saúde divididos em escalas de serviço e 364 no apoio administrativo.
Reduzir as causas de morte evitáveis, como desnutrição e diarreia, é o principal desafio do governo. No começo de 2024, o Distrito Sanitário Especial Indígena (Dsei) Yanomami elaborou um Plano de Saúde para o período 2024-2027, ao qual a Pública teve acesso. Em um dos pontos que geram dúvidas entre especialistas, o plano prevê “reduzir em 30%, até 2027, a taxa de mortalidade infantil indígena por causas evitáveis”.
“É muito pouco isso de ‘30%’. Falar nessa redução tão pequena é como dizer aos indígenas que estão entregues à morte. Se eles, do governo, não derem esperança aos Yanomami, quem vai dar? Tem que zerar e tem que falar em zerar”, disse um profissional da saúde que atua no território e falou à Pública sob a condição de ter a sua identidade preservada. Outros entrevistados optaram pela preservação de suas identidades porque seguem no trabalho de campo.
Em outro trecho, o plano da Sesai fala em “alcançar, em 2027, 70% das crianças indígenas menores de 1 ano com esquema vacinal completo”.
“Até poucos anos atrás”, disse o profissional à reportagem, “a gente alcançava os 100% de vacinação. Por que agora estamos falando em 70%? Está errado, tem que buscar o máximo.”
A malária continua alta em todo o território. Conforme o último boletim divulgado pelo governo em fevereiro e relativo a dezembro de 2023, no território em que vivem 32 mil indígenas foram notificados 29 mil casos da doença ao longo do ano.
“A malária é o carro-chefe da desestruturação da saúde na Terra Yanomami. A ela estão associadas perdas de peso, comorbidades, doenças respiratórias, anemia. Os médicos que já trabalharam no processo de reestruturação da saúde Yanomami na década de 2000 costumam dizer que, ‘se você trata a malária, todo o resto melhora’”, disse um especialista.
Profissionais de saúde empenhados no enfrentamento da crise apontam a necessidade de intensificação da chamada “busca ativa” dos casos de malária seguida de um tratamento intensivo e supervisionado. Apontam a necessidade de uma “força-tarefa” específica para o combate à malária. Em seus balanços, a Saúde diz que realiza a “busca ativa”, mas o atual modelo parece não estar funcionando – basta ver que os números da doença continuam altíssimos.
Outro dos focos de preocupação gira em torno do programa de acompanhamento de peso e nutrição das crianças Yanomami. A desnutrição infantil continua matando dentro do território. Em dezembro, estavam em tratamento 93 crianças com menos de 5 anos com desnutrição grave e outras 77 com desnutrição moderada.
Para reduzir ou zerar a desnutrição, dizem os especialistas, é necessário um acompanhamento efetivo e direto nas aldeias. Dados do Ministério da Saúde obtidos por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI) revelam que o esforço até agora realizado não cobre a totalidade de 5.789 crianças Yanomami menores de 5 anos de idade. Segundo o levantamento, 16,5% das crianças (ou seja, 955) não recebem o acompanhamento da vigilância nutricional e alimentar.
O levantamento mostra aldeias com alto número de crianças desnutridas com um percentual de crianças acompanhadas pelo sistema nutricional ainda baixo. No pólo-base da Saúde em Auaris, por exemplo, há 227 crianças com muito baixo peso para a idade (38,7% do total das crianças na comunidade, ou 851 crianças) e 155 com baixo peso para a idade (26,4%), mas apenas 69% das crianças são acompanhadas.
Na localidade do Parafuri, apenas 48,8% das 86 crianças são acompanhadas. Em Surucucu, apenas 47,5% das 518 crianças menores de 5 anos são acompanhadas.
“Nos anos do governo Bolsonaro, houve uma verdadeira inércia, a ida das equipes de saúde às aldeias não era incentivada. Até por razões de segurança mesmo, com a invasão garimpeira. Por volta de 2020 veio uma ordem de paralisar as visitas às aldeias. O resultado é que essa prática se cristalizou no Dsei como uma cultura institucional. Hoje, quando uma equipe chega à aldeia, pouco depois já quer ir embora, inclusive pela insegurança gerada pela proximidade com os garimpos. Não se estabelecem vínculos com a comunidade. É preciso enfrentar e mudar essa realidade, mas isso pode demorar. O problema é que não se pode mais demorar numa emergência como a que estamos vivendo”, disse outra especialista.
Segundo o último boletim do governo, há 28 nutricionistas em campo divididos por escalas de serviço. Contudo, o plano apresentado no início do ano não traz um detalhamento sobre como será o trabalho de acompanhamento das crianças do ponto de vista alimentar e nutricional. Igualmente, não detalha o plano de busca ativa para os casos de malária.
O governo enfrenta dificuldades administrativas, por exemplo, na hora de contratar pessoal especializado em saúde indígena. No entanto, o plano do período 2024-2027 também não explica como e quando ocorrerão as contratações, quantos profissionais serão contratados e como serão formados.
Tanto no acompanhamento da nutrição das crianças quanto na busca e combate dos casos de malária, o acesso às aldeias é determinante. Para os especialistas ouvidos pela Pública, é fundamental envolver a própria comunidade indígena no atendimento à saúde.
“Das 21 aldeias na região do Xitei, 13 só têm acesso por helicóptero. Sucurucu tem 23 aldeias, cerca de 18 são só alcançadas por helicóptero ou depois de três ou quatro dias de caminhada. O único helicóptero que tem na Terra Yanomami não vai estar disponível. A logística é muito complicada, é praticamente toda aérea. Se a gente não formar os indígenas, se não der meios para se comunicar com eles, não vamos ter sucesso. Como ainda tem garimpo no território, se os medicamentos são entregues e os trabalhadores da saúde logo vão embora, o mais provável é que tudo seja extraviado para o garimpo.”
Ausência de maiores detalhes sobre tópicos fundamentais como esse lança sombras sobre a efetividade e a execução dos planos do governo na saúde. Já estamos quase no meio do ano. Quando chegarmos a dezembro, ninguém vai querer a repetição do genocídio Yanomami.
Fonte: Agência Pública