Primeiro, foi o fogo. Era uma madrugada abafada naquele 26 de abril, quando Luiz Antônio Bueno, 58 anos, foi despertado pelos gritos de socorro que se mesclavam com os estalos nas paredes de madeira. A pousada Garoa, conveniada com a Prefeitura de Porto Alegre para receber pessoas em situação de vulnerabilidade social, começava a queimar. Dezenas de moradores corriam pelos corredores, alguns pulavam das janelas e muitos rolavam pelas escadas na tentativa de escapar da fumaça e das labaredas. Cerca de vinte conseguiram sair, quase todos com ferimentos. Dez morreram. Era o maior incêndio em número de mortes na capital gaúcha desde 1976.
Oito dias depois, foi a água. O calor persistia em um outono atipicamente quente no Rio Grande do Sul. Luiz, que havia sido realocado para outro estabelecimento da mesma rede de assistência social da Prefeitura, a poucos quilômetros do primeiro, ainda se recuperava das queimaduras nos pés quando novamente foi despertado pelos gritos de socorro. Desta vez, eles se confundiam com o barulho da correnteza. Era madrugada do dia 3 de maio e a enchente havia invadido a pousada em tamanha velocidade que não deu tempo de sair a pé. Os alertas de evacuação tardaram a chegar. Dezenas de moradores tiveram que adentrar a água, que já tomava conta de quase toda a recepção do prédio, para serem resgatados de barco. Pela segunda vez em poucos dias, ele era obrigado a abandonar sua casa, seus amigos e suas memórias. Acontecia a maior enchente na cidade desde 1941.
Desempregado, antes de ir parar na pousada que pegou fogo, Luiz dividia uma casa com o irmão, que estava doente. “Eu não tinha outras pessoas. Meu filho foi assassinado por traficantes, minha mãe já tinha falecido. Eu estava tentando recomeçar a vida depois de tudo isso. Tirei carteira de motorista e estava juntando dinheiro para comprar um carro para trabalhar como Uber”, conta.
Com a morte do irmão e a necessidade de deixar o local onde viviam, recorreu a um programa social da prefeitura. “Fiquei feliz em ter conseguido um teto para morar, lá na pousada Garoa. Só que, quando cheguei, já notei que o lugar não era bom. As paredes eram todas de madeira, muito sujo, não tinha nem extintor de incêndio”, conta. Na noite em que o empreendimento se incendiou, Luiz conseguiu escapar com alguns poucos pertences na mochila porque colocou uma toalha molhada sobre a cabeça e saiu correndo. “Eu consegui porque fui rápido e me protegi na hora de sair, mas muitos ali não tiveram nem tempo de sair correndo, muitos morreram queimados nas suas camas”, conta.
Já na segunda vez, com a enchente, saiu só com a roupa do corpo. “Nem chinelo eu usei. Até porque já tinha perdido praticamente tudo na outra vez. A única coisa que consegui levar no bolso foi uma foto da minha mãe e outra do meu filho”, diz, enquanto descansa em um abrigo provisório na zona norte de Porto Alegre. Neste local, em que divide um ginásio com outras centenas de desalojados pelos alagamentos, Luiz tenta imaginar o que será o futuro: “Eu não consigo pensar muito. Não sei para onde ir depois daqui. Só tenho uma mochila de roupas que foram doadas. Não sobrou nada. Eu não aguento passar por algo assim mais uma vez”, desabafa. São muitos os fatores que incidem nas tragédias de Luiz Antônio. Entre eles a ausência do Estado.
Desde o incêndio da pousada Garoa, diversas investigações foram abertas para analisar os motivos que levaram o estabelecimento a queimar de forma tão rápida. Enquanto a Defensoria Pública do Estado do Rio Grande do Sul (DPE/RS) afirmou que iria apurar danos coletivos e violações de direitos humanos, o Executivo municipal anunciou que faria vistorias nos locais contratados para o serviço de abrigo.
O estabelecimento é um dos utilizados por pessoas em situação de rua que são beneficiárias de programas sociais da prefeitura de Porto Alegre. Há um contrato vigente entre a Fundação de Assistência Social e Cidadania (Fasc), que é vinculada à administração municipal, com a Pousada Garoa de R$ 2,7 milhões. O contrato estima uma oferta de 450 vagas à prefeitura para alocar essa população vulnerável. “Aquele alívio que eu senti logo que me colocaram na pousada virou um pesadelo. Quando cheguei lá, eu nem imaginava tudo que estava por vir”, conta Luiz.
Logo nas primeiras horas após o incêndio, os indícios de negligência começaram a aparecer. O estabelecimento não possuía alvará nem Plano de Proteção contra Incêndio (PPCI) específico para funcionamento de pousada. A prefeitura se pronunciou, afirmando que o PPCI era responsabilidade dos proprietários e que uma legislação recente dispensava o alvará do empreendimento e de todos os alojamentos ou pensões da Capital.
Só que denúncias de moradores e funcionários não tardaram a ganhar manchetes de jornais. Eles afirmaram, em entrevistas, que as estruturas do local eram insalubres, relataram acúmulo de lixo, mau cheiro e uso de materiais inflamáveis no interior do alojamento, como divisórias de madeira. A fiscalização da pousada, de acordo com o contrato assinado entre o estabelecimento e a Fasc, é de responsabilidade da prefeitura. “A gente sabia que estava em um local ruim, mas não tinha outra opção. O mais triste de tudo isso é que, além das minhas coisas, perdi também muitos amigos que não conseguiram sair da pousada. Outros estão entubados em estado grave em hospitais. A gente não sabe muita coisa, mas sabe que essas mortes poderiam ter sido evitadas”, diz Luiz.
Em uma das primeiras coletivas de imprensa após o incêndio, a prefeitura havia se comprometido a atualizar a população sobre a apuração do caso em até dez dias. Não deu tempo. Uma semana depois, outra tragédia se abateu sobre a vida de Luiz e de todos os gaúchos – só que dessa vez em dimensões muito maiores.
A enchente que começou a submergir o Rio Grande do Sul no início de maio após fortes chuvas desalojou, até o momento, mais de meio milhão de pessoas. Pelo menos 149 morreram e mais de 100 estão desaparecidas.
Confira a cronologia da crise no Rio Grande do Sul
Desde março, a MetSul Meteorologia vem alertando sobre chuvas intensas de abril e maio. No sábado, dia 27 de abril, algumas regiões sofreram impactos de chuvas e granizo. No dia seguinte, a Defesa Civil contabilizou impactos em 15 municípios.
Na terça-feira, o Rio Grande do Sul registrou as primeiras mortes devido aos temporais. Na quarta-feira, o número de mortes aumentou para 11. Em todo o estado, casas, pontes e outras construções foram arrastadas pela força da água.
Na quinta-feira, o Rio Grande do Sul decretou estado de calamidade pública. Uma barragem rompeu parcialmente, e outras quatro apresentavam risco. Até sexta-feira, já haviam sido registradas 39 mortes.
O Rio Grande do Sul enfrenta a maior tragédia de sua história. Na manhã de domingo, o presidente Lula, acompanhado pelos presidentes da Câmara e do Senado, e pelo vice-presidente do STF, sobrevoou Porto Alegre de helicóptero.
As mortes chegam a 107 e os desaparecidos a 136, números que continuam aumentando. A quantidade de afetados passa de 1,3 milhão, em mais de 300 cidades impactadas. O número de pessoas desalojadas supera 164 mil, e há ainda 67 mil desabrigados.
Com final de semana chuvoso, mortes chegam a 147. Desabrigados já passam de 600 mil em 447 municípios afetados.
Uma catástrofe que, mais uma vez, foi agravada pela negligência do Estado. “Vivemos em uma zona em que conhecemos os riscos, eles são calculáveis. Sabemos das condições climatológicas dessa região, das obras de infraestrutura, e conseguimos prever o risco de que haja perda e destruição material, social e humana. Para que o risco seja diminuído, são necessárias ações mitigadoras. Só que não houve investimento nenhum nisso na última década” explica o doutor em ecologia e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Rualdo Menegat.
Somente em Porto Alegre e região metropolitana, afirma o especialista, parte da tragédia causada pelos alagamentos poderia ter sido evitada caso o atual sistema de contenção das enchentes estivesse com a manutenção em dia. A estrutura, criada na década de 1960 para proteger a cidade, conta com o Muro da Mauá, 14 comportas, 23 casas de bomba e vários diques. Ela deveria aguentar até um nível de elevação de seis metros do Lago Guaíba. No entanto, na última semana, colapsou antes mesmo de a água alcançar os cinco metros.
“Há pelo menos uma década a nossa infraestrutura, que nos torna menos vulneráveis, vem sendo sucateada. As comportas, por problemas de vedação e por falta de manutenção, extravasaram a água. As bombas, que têm como função expulsar a água da área interna do muro de volta ao Guaíba, pelo menos dez pararam de funcionar”, relata o especialista.
Em meio ao cenário preocupante, o sistema de alertas sobre tragédia no Rio Grande do Sul também falhou, mostrou reportagem da Agência Pública. Não à toa, enquanto observava pela janela do quarto a água subir, Luiz Antônio hesitou sobre o que fazer. “Eu vi que, na recepção da pousada, a água estava pelo joelho, mas não pensei que deveria sair. Não recebi orientação nenhuma sobre o que fazer. Fazia uma semana que eu tinha me mudado para esse novo lugar, eu recém estava me restabelecendo, não queria por nada sair novamente. Só que, pouquíssimo tempo depois, a água já estava no pescoço e as pessoas gritavam pedindo ajuda, nadando para chegar nos barcos de resgate”, lembra.
A gravidade da tragédia também teve influência direta de uma série de ações dos governos estadual e federal, que vêm contribuindo com a intensificação dos efeitos das mudanças climáticas. “Temos vários exemplos de afrouxamento do controle da legislação ambiental do Rio Grande do Sul nos últimos anos. O desmantelamento do Código Ambiental do Estado é um deles”, afirma Paulo Renato Menezes, secretário-geral da Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (Agapan).
Em 2019, durante seu primeiro mandato, o governador Eduardo Leite (PSDB), realizou alterações em diversas normas do Código Ambiental do estado, flexibilizando políticas ambientais e deixando áreas de proteção mais vulneráveis. “Mais recentemente, em 2024, a Assembleia Legislativa gaúcha aprovou um projeto que dá possibilidade aos produtores rurais fazerem açudes e barragens em Áreas de Preservação Permanente (APPs). São dezenas, talvez centenas de iniciativas no estado e também do governo federal que vêm contribuindo para o desequilíbrio dos nossos ecossistemas e para agravar a crise climática”, diz Menezes.
Um estudo realizado recentemente por pesquisadores do ClimaMeter, um projeto que reúne cientistas especializados em colocar eventos climáticos extremos em perspectiva, mostrou que as chuvas que caíram sobre o Rio Grande do Sul entre os dias 30 de abril e 2 de maio foram pelo menos 15% mais intensas por causa das mudanças climáticas.
Luiz desconhece esse estudo. Tampouco sabe sobre a política ambiental do atual governo. Mas ele leva na pele as cicatrizes do descaso. “Eu estudei só até o segundo grau, não entendo muito bem tudo isso que está acontecendo, mas eu já vivi muito para saber que as coisas não são como deveriam ser. Primeiro foi o fogo, depois a água. Vi amigos morrendo queimados e outros sendo levados pela correnteza. Me sinto desprotegido, mais desprotegido do que nunca”, desabafa.
Fonte: Agência Pública