Um dos argumentos que a prefeitura de São Paulo usou para encerrar o serviço de aborto legal no Hospital Vila Nova Cachoeirinha – a unidade que mais fazia atendimentos na maior cidade do país – foi a suspeita de que alguns dos procedimentos teriam sido irregulares, ou seja, fora da lei que permite a interrupção da gravidez em casos de violência sexual, anencefalia do feto ou risco de vida da gestante.
Logo após a suspensão, no fim do ano passado, o secretário de Saúde, Luiz Carlos Zamarco, disse que ia mandar a sua equipe fazer um levantamento dos abortos feitos na unidade, suspeitando de que havia alguma coisa errada. E a Secretaria de Saúde chegou a copiar os prontuários dos pacientes – o que é ilegal, pois os dados são sigilosos e só poderiam ser acessados pelos próprios pacientes ou por ordem judicial. “A equipe técnica, junto com o Cremesp [Conselho Regional de Medicina de São Paulo], tem autorização de verificar prontuários onde existe suspeita de irregularidade”, disse Zamarco na época.
No entanto, informação obtida pela Agência Pública via Lei de Acesso à Informação (LAI) mostra que a secretaria não registrou nenhuma denúncia de aborto ilegal no Vila Nova Cachoeirinha nos últimos anos. Em outras palavras, não havia nenhum motivo para suspeitar de ilegalidades no serviço a ponto de suspendê-lo.
“A Secretaria Executiva de Atenção Hospitalar da Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo informa não ter registrado denúncia de aborto ilegal no hospital municipal Vila Nova Cachoeirinha abrangendo o período solicitado (desde 2019)”, diz o texto enviado à reportagem pela Comissão Municipal do Acesso à Informação, órgão que delibera em última instância sobre pedidos de informação na gestão municipal, após o pedido ter sido negado duas vezes pela Secretaria de Saúde.
“A ausência de denúncias deixa claro que não existe motivo para fechar o serviço de aborto legal e demonstra que decisão do prefeito Ricardo Nunes foi ideológica e, portanto, ilegal. Cabe lembrar que o serviço fechado pelo prefeito atendia na maioria dos casos jovens vítimas de estupro. Vamos recursar até conseguir que o serviço volte”, disse a deputada federal Luciene Cavalcante, do PSOL, uma das autoras de uma ação popular que pede que o serviço seja retomado.
Na ação popular movida por ela e pelo vereador Celso Giannazi (PSOL), a prefeitura recorreu duas vezes na Justiça, e ganhou, para que o serviço se mantivesse fechado no Vila Nova Cachoeirinha. A decisão favorável à prefeitura diz que a suspensão do aborto legal na unidade não é ilegal porque pacientes seriam encaminhados a outros hospitais da cidade. Os autores da ação recorreram mais uma vez, argumentando que os outros hospitais negam o atendimento para pessoas em fase de gestação avançada. Ainda não houve nova decisão. Enquanto isso, o serviço permanece fechado.
Além das supostas irregularidades, a prefeitura argumentou também que a suspensão do serviço faria parte de uma “reorganização” com objetivo de realizar no local mutirões de cirurgias envolvendo a saúde da mulher, como de endometriose. No entanto, profissionais consultados pela Pública dizem que os atendimentos relacionados a aborto não prejudicam a realização de outros procedimentos, porque as equipes não seriam as mesmas e o número é relativamente baixo. O Vila Nova Cachoeirinha realizou em média nove abortos legais por mês em 2023 – o ano com mais atendimentos de sua história.
O hospital é o que mais realizava abortos legais na cidade de São Paulo – bem mais que todos os outros autorizados a fazer o procedimento na capital. Foram 419 atendimentos na última década. Os outros quatro que prestam o serviço, somados, atenderam 190 casos no mesmo período.
Apenas o Vila Nova Cachoeirinha fazia a interrupção da gravidez em meninas e mulheres com mais de 20 semanas gestacionais. A prefeitura alega que o Hospital Municipal e Maternidade Prof. Mário Degni, Hospital Municipal Tide Setúbal, Hospital Municipal Dr. Fernando Mauro Pires da Rocha (Campo Limpo) e Hospital Municipal Dr. Cármino Caricchio ainda fazem o atendimento em casos de gestação avançada.
A Pública apurou, com profissionais de saúde e entidades que atuam pelo direito das mulheres, que isso não está ocorrendo. Em março, já contamos o caso de uma mulher que foi vítima de violência sexual e teve o direito negado. Ela precisou sair do seu estado para ser atendida em um hospital de Salvador, na Bahia.
A Defensoria Pública de São Paulo recebeu o caso de uma mulher, vítima de violência sexual, que teve o direito negado no Hospital do Campo Limpo – uma das unidades que deveria fazer o atendimento na capital paulista. Com 24 semanas de gestação, ela foi informada de que o serviço não poderia ser realizado por falta de preparo da unidade. Em vez de indicarem que ela fosse a outro hospital, a equipe recomendou que ela procurasse diretamente a Defensoria, porque só teria o direito garantido se entrasse na Justiça.
O pedido foi concedido e a juíza que analisou o caso ordenou que o aborto fosse realizado. Mas, nesse meio-tempo, o Conselho Federal de Medicina (CFM) editou uma resolução que proíbe médicos de fazerem assistolia fetal, um método aprovado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) para casos de aborto acima de 20 semanas, que seria o caso dela. Então a decisão foi revertida. Uma liminar chegou a suspender a resolução do CFM, mas ela foi derrubada na última semana.
Com esse vai e vem, a mulher, que tem o direito constitucional de interromper a gravidez por ter sido em decorrência de estupro, ainda tem o destino incerto.
Nesta segunda-feira (29), o Cremesp votou, por unanimidade, pela interdição cautelar de duas médicas do Vila Nova Cachoeirinha. Outro caso será analisado na sessão desta terça. Os profissionais teriam praticado tortura, tratamento cruel, negligência, imprudência e assassinato de fetos, segundo apontou a Folha de S.Paulo.
Os casos teriam chegado ao conselho de forma ilegal, pelo acesso aos prontuários das pacientes, ainda de acordo com o jornal. Os documentos também teriam sido encaminhados à Secretaria de Segurança Pública e à Polícia Civil, o que suscita o temor de que profissionais de saúde e pacientes sejam alvos de investigações criminais.
A manutenção da suspensão do atendimento de abortos legais no Vila Nova Cachoeirinha e a perseguição a médicos têm gerado um clima de tensão entre os funcionários da unidade e de outras que ainda fazem aborto legal. Segundo relatos ouvidos pela Pública, há o entendimento de que a alta cúpula da prefeitura não concorda com a interrupção de gestações avançadas por motivos morais e de que vai dificultar os atendimentos apesar de estarem previstos na lei.
A gestão Ricardo Nunes chegou a indicar uma médica abertamente antiaborto e filiada ao PL, partido de Jair Bolsonaro, para ser diretora da unidade, mas recuou após o caso ganhar repercussão na imprensa.
A bancada feminista do PSOL na Câmara Municipal enviou uma representação à Organização das Nações Unidas (ONU), à OMS e à Organização Pan-Americana de Saúde (Opas) apontando que o fechamento do serviço no Vila Nova Cachoeirinha, a resolução do CFM e outras medidas recentes representam “expressa vedação ao acesso ao aborto legal a meninas, mulheres e pessoas com útero vítimas de violência sexual”.
As vereadoras pedem que os órgãos internacionais “intervenham e exortem o Brasil a garantir o acesso irrestrito ao aborto legal para as vítimas de violência sexual, conforme previsto na legislação nacional e nos tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo país”.
Perguntamos para a prefeitura sobre os pontos citados nesta reportagem, mas a resposta enviada foi protocolar. “A Secretaria Municipal da Saúde informa que o programa Aborto Legal está disponível em quatro hospitais municipais da capital. São eles: Hospital Municipal Dr. Cármino Caricchio (Tatuapé); Hospital Municipal Dr. Fernando Mauro Pires da Rocha (Campo Limpo); Hospital Municipal Tide Setúbal; Hospital Municipal e Maternidade Prof. Mário Degni (Jardim Sarah). O serviço ocorre dentro das premissas de segurança e qualidade conforme prevê a legislação vigente”, diz a nota.
Fonte: Agência Pública