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Trago notícias do front digital. Quem não estava prestando atenção talvez não tenha percebido, mas na última semana o legado das ditaduras latinoamericanas foi fincado de uma vez por todas como bandeira da extrema direita populista. O tema se transnacionalizou.
Em 24 de março, Dia Nacional da Memória pela Verdade e a Justiça, o presidente argentino Javier Milei decidiu fazer uma provocação sem precedentes, publicando um vídeo oficial com uma defesa aos militares e acusações pesadas contra aqueles que lutaram contra a ditadura. O vídeo renomeia a data de Dia Nacional pela Verdade e a Justiça “Completa”.
Primeiro, um contexto: Milei não tem ligação com a ditadura, é um ultraliberal, libertário, e governa ao estilo dos novos populistas digitais: à base de testes A/B. Assim como Trump, de maneira calculada, e Bolsonaro, por tosquice pessoal, ele sabe que causar debate, atacar e ser atacado, é a estratégia número um para tempos mediados por algoritmos das poucas plataformas que de fato mediam a coisa pública. Assim, chamou para ser sua vice-presidente Victoria Villarruel, filha de um militar envolvido na dura repressão ditatorial, por ser claramente uma afronta ao bom senso no país em que, sabemos, puniu-se os militares que torturaram e mataram.
(Na Argentina, mais de 1100 pessoas foram condenadas por crimes de lesa-humanidade.)
Agora, aposta em reescrever a história da ditadura porque dá clicks.
O vídeo, editado à mesma maneira propagandística usada pela produtora Brasil Paralelo, com músicas dramáticas para causar comoção, traz o depoimento de uma vítima de um grupo armado de esquerda – que ela chama de “terrorista” –, filha de um militar morto na sua frente, assim como sua irmã, à época com 3 anos. Essa história chocante é usada para introduzir um argumento que é nosso velho conhecido: de que os militares estavam na verdade no meio de uma guerra, que houve “baixas dos dois lados”, que apenas metade da história foi contada e que as vítimas da guerrilha não tiveram acesso à Justiça.
É o que chamamos de “dois-ladismos”, a equiparação de versões diferentes para dizer que têm o mesmo peso (como dar o mesmo espaço para quem defende que as vacinas contra Covid não funcionam, por exemplo). Umas das frases marcantes do vídeo, ouvida da boca de um ex-militante de esquerda, é: “Assim é a guerra, os dois lados se converteram em monstros”.
(Para efeitos de Justiça, reforço que os crimes militares, tanto lá quanto aqui, foram realizados pelo Estado, financiados pelos impostos da população, com aparato zilhões de vezes superior, e que aqueles acusados de terrorismo foram punidos à época, tanto por prisões quanto por meios muito mais inumanos).
Em resposta, as Mães e Avós da Praça de Maio convocaram manifestações para o mesmo dia, sob o lema “Hoje mais do que nunca, nunca mais”, atraindo dezenas de milhares a Buenos Aires.
Causar furor era exatamente o que Milei queria. Trata-se, entretanto, de um passo além, que demonstra que a pauta de defender a ditadura já não é um tabu, é popular também entre os jovens, alvoroça os corações e pode até unir a direita no continente.
Em que pese a determinação do presidente Lula em não “remoer o passado”, parece que, na verdade, a direita argentina está aprendendo com o bolsonarismo.
Por aqui, o Clube Militar decidiu realizar um almoço para celebrar o golpe, com direito a discursos do general Maynard Santa Rosa louvando os militares que destruíram nossa democracia naqueles idos – cuja prévia delirante foi publicada no site do Clube Militar. Este mesmo site, aliás, lançou uma nota intitulada “Ordem da noite”, assinada pelo coronel da reserva José Gobbo Ferreira, afirmando que “a contrarrevolução de 1964 foi tão importante para a história de nosso País que é fora de questão deixar seu aniversário passar em branco”.
O texto, extremamente popular em grupos de WhatsApp de militares, conforme mostrou nossa reportagem, reafirma o que pensam muitos bolsonaristas: “as pessoas que hoje comandam o Exército Brasileiro não são donas da Força”, diz, complementando que “a Força vem vivendo hoje em sua transição rumo ao bolivarianismo”.
Bolivarianismo, como sabem os caros leitores, é apenas mais uma das encarnações do fantasma do comunismo.
Teve mais. Ainda na semana passada, o presidente do Superior Tribunal Militar, o Tenente-brigadeiro-do-ar Francisco Joseli Parente Camelo, realizou um feito raro ao chegar aos Trending Topics do X/Twitter de Musk. Tudo por causa de uma frase dita durante entrevista à Bandnews TV: “Não existe no Brasil essa ideia de comunismo, o comunismo acabou”. Joseli, depois, explicou que o muro de Berlim caiu e que Lula não é comunista. “Ser de esquerda é realmente querer um Brasil melhor, mais solidário, mais próximo, que pense no mais pobre”.
O vídeo, editado, foi amplamente compartilhado nas redes bolsonaristas e atraiu uma quantidade enorme de comentários virulentos, que acusam o STM de ser de esquerda, melancia, comunista. “Nauseante escutar isso. Vermelho até a alma. Só consigo lembrar de tantos patriotas pedindo SOS Forças Armadas. Esses vagabundos rindo”, comentou uma usuária no X/Twitter. “A questão é: O Exército é vermelho e nós corremos sérios riscos”, respondeu outra.
As declarações causaram tanto escândalo no bolsonarismo (houve matérias no Terra Brasil Notícias, tweets de influenciadores e até um comentário indignado de Augusto Nunes, que usou a palavra “idiotia”) que passou desapercebido o fato de que Joseli fez questão de chamar o Golpe de 64 de “Revolução” e defender veementemente seu legado.
“Então esse é o termo, Revolução, e foi alguma coisa necessária. Para mim foi necessária naquele momento porque a indisciplina estava começando a se infiltrar em nossos quarteis, e também o comunismo. Era outro momento, nós tínhamos uma bipolaridade, então naquele momento eu vejo 64 como uma revolução, e como necessária”.
Se as nossas lideranças militares continuam aferrando-se ao fantasma do comunismo passado, é claro que o fantasma do comunismo presente, imaginado, seguirá sendo incensado pela indústria cultural de direita – é, aliás, este o tema da última produção do Brasil Paralelo.
É notório que uma das características dos movimentos populistas e suas propaladas guerras culturais é justamente reescrever a história, retomando e reforçando valores antiquados, religiosos, patriarcais, e tudo mais que servir à visão ideológica segundo a qual “antes era melhor”. Assim, vão revivendo a glória das Cruzadas, as benesses da colonização e até relativizando os males da escravidão. Reescrever a história das ditaduras é apenas mais um elemento nesse bolo.
Então trago, do front digital, más notícias ao leitor. A guerra cultural continua à toda, por mais que o país hoje viva uma normalidade democrática e esses espaços sejam menos visíveis do que há dois anos.
E, no rol de temas “polarizantes” como aborto e drogas, também o legado das ditaduras chega à primeira fileira.
Para a extrema direita, disputar o passado é, cada vez mais, uma ótima estratégia para garantir seu futuro eleitoral.
Fonte: Agência Pública