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Na semana passada, eu discuti neste espaço um estudo brasileiro que tratava das múltiplas ameaças enfrentadas pela Amazônia e o risco de até metade da floresta entrar em um processo de colapso a partir de 2050 se essas ameaças não forem contidas.
Os alertas dos pesquisadores se fizeram ainda mais prementes ao longo desta semana, quando o aqui e agora se impôs frente às estimativas de futuro. O fogo que já tinha chamado atenção no fim do ano passado voltou a atingir partes da região de modo preocupante. A Amazônia teve o mês de fevereiro com mais focos desde o início do monitoramento feito pelo Inpe, em 1999.
Até esta quarta-feira (28), o bioma teve o registro recorde de 2.961 focos, quatro vezes o montante do mesmo mês no ano passado (734) e 68% acima do recorde anterior para fevereiro, que era de 2007 (1.761 focos). Janeiro já tinha tido o dobro de focos no bioma na comparação com o mesmo período do ano passado, apesar de não ser recorde.
O problema se concentra basicamente em Roraima, onde foram registrados 2.002 focos até ontem – também um recorde para o mês no estado desde o início da série histórica.
Apesar de o início do ano ser a temporada de chuvas na Amazônia, Roraima em geral tem sua estação seca nesse período. O problema é que neste ano a seca está extrema – seguindo o cenário dramático que se observa desde o ano passado por combinação entre El Niño e mudanças climáticas.
De acordo com reportagem do Estadão, as chamas em Roraima “avançam por áreas protegidas, como unidades de conservação ou indígenas, e a fumaça encobre estradas, como a RR-206, e partes de Boa Vista”.
Ao jornal, a especialista em fogo Ane Alencar, do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam), disse que é comum Roraima ter queimadas nessa época do ano, mas a enorme quantidade que se vê agora, não. Para ela, trata-se ainda de um resquício da seca que afetou a Amazônia desde maio do ano passado, com altas temperaturas e redução de chuvas.
A situação se estende pelo oeste da Amazônia Panamericana, com queimadas intensas também na Venezuela e na Colômbia. O serviço de monitoramento atmosférico Copernicus, ligado ao programa espacial europeu, registrou que o fogo em todas essas regiões em fevereiro levou a um pico de emissões de gases de efeito estufa localmente.
Por causa do fogo em Roraima, não só o estado, como todo o Brasil, acabou batendo recorde de emissões provenientes das queimadas para o mês desde 2003, segundo o Copernicus.
E tudo indica que a situação não deve dar muita trégua ao longo do ano. Há estimativas de que, globalmente, 2024 possa bater o recorde de 2023 como o ano mais quente. E uma pesquisa divulgada nesta quinta-feira (29) estima que partes da Amazônia podem atingir picos de temperatura em decorrência da continuidade do El Niño.
O trabalho, que acaba de ser publicado na revista Scientific Reports, estimou que até junho diversas partes do mundo provavelmente vão experimentar temperaturas do ar mais elevadas do que o normal por causa do fenômeno de aquecimento das águas do Pacífico, que ainda deve se manifestar nos próximos meses.
“Este calor iminente aumenta o risco de ondas de calor marinhas durante todo o ano e aumenta a ameaça de incêndios florestais e outras consequências negativas no Alasca e na bacia amazônica, necessitando de medidas estratégicas de mitigação para minimizar os piores potenciais impactos”, alertam os autores, liderados pelo pesquisador Congwen Zhu, da Academia Chinesa de Ciências Meteorológicas.
Pesquisadores brasileiros vêm recomendando já há um ano que o governo adote medidas diferentes das habituais para lidar com o fogo porque as condições estão mais favoráveis aos incêndios. Queimadas sempre tiveram, e têm, uma relação intrínseca com o desmatamento. Em linhas muito gerais, desmata-se, a madeira queimada fica no chão, secando, e, quando a estação está bem seca, o desmatador vai lá e acende o fósforo, para acabar de limpar a área.
Há também o fogo para limpar pasto e outros processos ligados à agricultura. Em todos eles, fagulhas podem escapar, queimando também as florestas ainda em pé. Uma coisa é queimada de área já desmatada, outra é incêndio florestal.
Como a Amazônia é úmida, quando ela está em boas condições, esse incêndio da vegetação acaba não tendo grandes consequências. Mas, com calor extremo e falta de chuva, as árvores ficam muito fragilizadas, podendo queimar brutalmente. Em anos de El Niño, a mortalidade de árvores por fogo é sempre muito maior. E as chances de recuperação posterior são bem mais baixas.
Sabia-se desde o começo do ano passado que um El Niño viria. O governo atuou e o desmatamento caiu, diminuindo a oferta do material combustível, mas o clima piorou.
“Estamos entrando em território desconhecido com as mudanças climáticas, com coisas acontecendo que antes não aconteciam e em lugares que não tinham histórico dessas coisas acontecerem. Então a gente precisa de flexibilidade tanto em termos de lei quanto em termos financeiros para conseguir atuar nessa adaptação”, recomenda a pesquisadora Érika Berenguer, uma das maiores especialistas em fogo da Amazônia, coautora do estudo sobre o ponto de não retorno que citei na newsletter passada.
Segundo ela, não adianta apenas ter um recurso fixo todo ano para o combate ao fogo na Amazônia. “A gente precisa ter algo como um fundo de emergência para anos de seca extrema e que tenha flexibilidade para a alocação desse recurso, porque tem áreas que a gente já sabe que em anos de seca extrema vão precisar de um trabalho de prevenção, mas tem áreas que vão surpreender a gente, como vimos no ano passado.”
Enquanto isso, porém, os investimentos em quem atua na linha da frente continuam empacados. O governo ainda não apresentou uma oferta que atenda às demandas dos servidores ambientais, e fiscais do Ibama mantêm a paralisação de atividades de fiscalização em campo que teve início em 1º de janeiro.
Os servidores do PrevFogo, que fazem o combate às queimadas, não deixaram de trabalhar. De acordo com o Ministério do Meio Ambiente, 251 deles foram alocados em Roraima. Mas outras atividades não estão sendo feitas.
“A alta incidência de incêndios florestais na região de Roraima está, evidentemente, associada ao fenômeno climático El Niño, que provocou significativas alterações nas condições meteorológicas, com períodos de seca intensa mais prolongados. Essas condições de seca facilitam a propagação de incêndios florestais. No entanto, já é comprovado que a ocorrência, ou seja, o início destes incêndios, se dá em grande parte pela ação humana”, me disse o analista ambiental Wallace Lopes, diretor da Ascema (a associação nacional dos servidores de meio ambiente).
“A mobilização dos servidores da área ambiental pelo fortalecimento das instituições e pela reestruturação da carreira resultou em uma redução do efetivo desses órgãos em campo, justamente no início do ano, período crítico para o trabalho de prevenção dos incêndios em Roraima”, afirmou.
“Embora os servidores do PrevFogo estejam atuando no local, a diminuição na capacidade de fiscalização certamente contribuiu para o aumento dos alertas de incêndios, muitos dos quais são provocados por ações ilegais, como o desmatamento e queimadas. A capacidade atual dos órgãos ambientais de responder a emergências como esta, que já é muito abaixo do necessário, fica ainda mais comprometida quando os servidores não estão disponíveis para realização de atividades externas”, continuou o analista.
“Agora é um fato que a nossa estrutura não é capaz de suportar incidentes de proporções tão grandes como estes que envolvem o El Niño. A nossa mobilização é justamente para melhorar a nossa capacidade de resposta. Precisamos de concursos, de estrutura, de segurança jurídica, de valorização… Isso tudo está no bojo da reestruturação da carreira”, complementou.
Fonte: Agência Pública