O Ministério Público Federal (MPF) se manifestou pela extinção sem julgamento de mérito de vários mandados de segurança impetrados por alunos contra as decisões da comissão de heteroidentificação da Universidade Federal de Uberlândia (UFU) e, no mérito, pela denegação da segurança. A comissão indeferiu as autodeclarações de pardo/negro no controle contra fraudes apresentadas e negou a matrícula nos cursos pleitados por esses candidatos.
Nos pareceres apresentados, o MPF defende que os pedidos devem ser extintos pela inadequação, em si mesma, do uso do mandato de segurança pois, nesse tipo de ação, é necessário que o direito seja líquido e certo e que não seja preciso realizar a dilação probatória para a produção de provas.
“A questão do preenchimento ou não de requisito de matrícula relacionado à raça/etnia e cor do candidato é matéria fática que demanda dilação probatória por exigir verificação por terceiros especialistas (Comissão de Heteroidentificação), tal qual o conteúdo de uma prova dissertativa e/ou oral ou o corpo/vestígios físicos de delito a ser verificado em exame de corpo de delito”, defende o procurador da República Onésio Soares Amaral.
Para o procurador, esse preenchimento ou não da condição étnico-racial (traços físicos negroides – textura do cabelo, formato do rosto em geral, com observação dos traços do nariz, da boca, dos lábios, dos olhos –, inclusive a cor da pele) refere-se a um conjunto de atributos físico-corpóreos dos candidatos. Assim, trata-se, por definição conceitual, de questões fáticas impossíveis de serem discutidas pela estreita via do mandado de segurança.
Jurisprudência consolidada – Além disso, a Corte Especial do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1), ao analisar um caso similar no qual um candidato insurgia-se contra a decisão da banca examinadora (Comissão de Heteroidentificação) que decidiu que ele não preenchia os requisitos para as cotas étnico-raciais, firmou entendimento no sentido do não-cabimento do mandado de segurança para discutir a questão: “O mandado de segurança é ação de rito especial que não admite dilação probatória, pois exige prova pré-constituída do alegado direito líquido e certo. Ante a ausência de tais elementos de prova, a via mandamental torna-se inadequada e prejudicial à análise da pretensão”, diz a decisão do tribunal.
As manifestações do MPF ainda ressaltam que a análise do preenchimento ou não dos requisitos étnico-raciais feito pela comissão de heteroidentificação é realizada em condições bem definidas, em ambiente controlado, com o mesmo parâmetro para todos os candidatos, por avaliadores tecnicamente treinados, com produção intersubjetiva e por terceiros desinteressados no resultado final.
“Trata-se, em verdade de análise sobre as características físicas visíveis, tais quais descritas nos diversos Editais de Vestibular da UFU, fenotípicas do(a) candidato(a) (isto é, do ‘corpo’ dele(a)): embora não seja um exame de corpo de delito, mas por óbvio segue a mesma lógica; o que, por definição conceitual, é matéria fática (não incontroversa: ao contrário, controversa e que só pode ser aferida por banca/comissão examinadora própria para tanto e que possua todos os critérios acima expostos, a Comissão de Heteroidentificação), razão pela qual, incabível a discussão do preenchimento ou não do requisito pela estreita via do Mandado de Segurança”, diz o parecer.
Além disso, o próprio TRF1 já consolidou esse entendimento. “Não há ilegalidade na utilização pela Administração de critérios subsidiários de heteroidentificação, como a instituição de comissão especialmente designada para aferição dos caracteres fenotípicos dos candidatos, pois esses caracteres, como a cor da pele, formato do nariz e do rosto, textura do cabelo, constituem, de um modo geral, os fatores da discriminação racial, o que se busca superar com a instituição do sistema de cotas raciais no acesso aos cargos públicos, assim como no ensino público”, diz a decisão do Tribunal.
Procedimento formal da comissão evita fraudes – O procurador ressalta que o trabalho feito pelas comissões de heteroidentificação tem uma importância fundamental, pois aprovar um candidato que está em inconformidade (ou fraude, até) com os critérios étnico-raciais exigidos pela política pública de cotas acaba por prejudicar, a um só tempo, os demais grupos étnico-raciais e, em especial, os dois maiores grupos étnicos constituídos pelos negros (de cor preta ou parda) e pelos brancos.
“Há um só tempo tal candidato(a) (‘branco’ concorrendo indevidamente nas vagas reservadas para a política de cotas etnico-racial para negros de cor preta e negros de cor parda) passa a retirar os direitos de um outro(a) candidato(a), de fato, negro(a) e ainda concorre em odiosa (porque artificial e sem qualquer base fática) condição de vantagem em relação aos candidatos do mesmo grupo étnico-racial (‘branco’, no caso); o qual se submeteu legalmente a um processo seletivo em condições menos vantajosas”, diz o parecer.
Ato administrativo válido – Outro ponto defendido nos pareceres do MPF é que as decisões da comissão de heteroidentificação da UFU são um ato administrativo como outro qualquer e, nessa condição, goza de presunção (relativa) de validade. Os mandados impetrados por esses alunos não apontam qualquer ilegalidade no ato de indeferimento das matrículas, limitam-se a demonstrar apenas mera irresignação com o critério de avaliação utilizado.
Em casos como esses de banca examinadora, tal qual o é a comissão de heteroidentificação, a jurisprudência dos Tribunais (STF, STJ, TRF da 1ª Região) é no sentido de que “não compete ao Poder Judiciário substituir a banca examinadora para reexaminar o conteúdo das questões e os critérios de correção utilizados, salvo ocorrência de ilegalidade ou de inconstitucionalidade”, conforme diz a tese definida no RE 632.853, Rel. Min. Gilmar Mendes.
Outro ponto atacado pelos pareceres do MPF é sobre a questão da tentativa de se atribuir a presunção absoluta de validade a uma declaração emitida unilateralmente por um particular, que deve ser validada por uma comissão de verificação, um órgão de Estado atuando em nome da sociedade, já que nenhuma identidade é formada de modo isolado e unilateral, mas sim pelo reconhecimento social.
Nesse sentido, a jurisprudência do TRF1 mencionada no parecer (na lina da decisão do STF na ADC 41) deixa claro que apenas essa autodeclaração não é suficiente para o enquadramento nas cotas raciais. “Contudo, embora se reconheça que a autoidentificação seja fator importante na construção da identidade racial do indivíduo, revelando a forma como este se percebe e se define para a sociedade, esta em si mesma não é suficiente para o enquadramento em cotas raciais, podendo e devendo ser aferida essa condição por uma comissão, representativa do olhar da sociedade para o indivíduo, como sucedeu na espécie e foi expressamente previsto no edital do concurso”, diz a decisão do Tribunal.
Para o procurador, “é completamente descabido o(a) candidato(a) querer impor a visão de mundo dele ao conjunto da sociedade (representada pela Comissão de Heteroidentificação), não obstante o direito dele de se autocompreender como pertencente ao grupo étnico que (aí sim), subjetiva e individualmente, melhor lhe aprouver”.
Além disso, nos pareceres do MPF deixa-se claro que o edital é expresso em afirmar que só serão utilizados critérios fenotípicos e não, de ancestralidade (descendência). São citadas também as decisões do STF na ADPF 186 e na ADC 41 que declararam, à unanimidade, e com efeito vinculante para todo o Judiciário e para toda a Administração Pública, que as cotas étnico-raciais e o controle da autodeclaração do candidato pelas Comissões de Heteroidentificação são constitucionais e privilegiam o direito à igualdade material dos cidadãos.
Suposto tribunal racial e racismo reverso – Para o MPF, o sistema de cotas tem que, ao menos em tese, propiciar alguma vantagem competitiva para o grupo minorizado que se busca incluir, sob pena de absoluta inefetividade da política pública e de não haver razão de ser para ela. E isso implica em que a política selecione os beneficiários dela com base em critérios relevantes.
Dessa forma, como a sociedade racializa as relações e as pessoas, não se pode deixar de enxergar esses traços utilizados (os traços negroides, em quem os tem e somente em quem os tem) para se propiciar a igualdade jurídica no acesso às oportunidades educacionais no ensino superior.
Assim, tal postura exigida pelo Estado Democrático de Direito nada tem a ver com a ideia de Tribunal Racial. Para o procurador da República Onésio Amaral, essa comparação é mais um fenômeno do racismo estrutural para impedir que as cotas possam avançar, pois tal tribunal refere-se a tribunais nazistas criados para identificar e julgar judeus e para condená-los, em ultima instância, à morte em câmaras de gás. “Não há qualquer razoabilidade (para se usar um termo educado) em se pretender comparar tal evento histórico (Nazismo) à observação e controle de uma política pública (pelas Comissões de Heteroidentificação) que objetiva incluir e integrar uma população historicamente marginalizada e alvo de racismo (a população negra: pretos e pardos)”.
Os pareceres também atacam a ideia de um suposto “racismo reverso” que também parte do equivocado pressuposto de que “haveria um racismo original e correto” (do branco contra o negro) e um “racismo fora do lugar”, daí reverso já que seria supostamente praticado pelo grupo minorizado, dos negros, contra o grupo majoritário/dominante (os brancos). Para o procurador, esse tipo de pressuposição não encontra qualquer eco na realidade fática da sociedade. “Nenhum branco, hétero, e com certo nível de renda – exatamente como é a condição deste procurador da República – precisa justificar-se em qualquer espaço social que chega. Pelo contrário, a ocupação desse espaço social (seja no trabalho, no lazer ou em outro espaço social em geral) é naturalizada com sendo a ele devida e legitimamente ocupada”, diz o documento.
Pedidos – O MPF manifestou-se em cinco mandados de segurança ajuizados por estudantes que questionaram as decisões da UFU, em todos eles manifestou-se pelo não conhecimento dos pedidos e, no mérito, pela denegação da segurança. Em um dos casos, recorreu da sentença que invalidou a decisão da comissão, e o recurso será julgado pelo TRF1.
Íntegra – manifestação – Pedro Henrique Goncalves Campos – Recurso ao TRF1
Íntegra – manifestação – Marcius Claudio Da Silva
Íntegra – manifestação – Ana Clara Ferreira Sousa Bessa
Íntegra – manifestação – Luanna Ellen Santos Borges
Íntegra – manifestação – Maria Eunice Silva Santana
Fonte: Ministério Público Federal