Ter uma casa para morar é a porta de entrada para os demais direitos. Com esse conceito, o projeto Moradia Primeiro (Housing First), criado nos Estados Unidos, tem sido implementado no Brasil como uma das soluções para os problemas vivenciados pela população em situação de rua no país. Para debater o tema, o Ministério Público Federal (MPF) promoveu, na última sexta-feira (18), o segundo webinário do Ciclo de Eventos sobre População em Situação de Rua. Organizado pela Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC), o evento faz parte do Projeto Encontros da Cidadania.
Na abertura dos debates, o procurador federal dos Direitos do Cidadão, Carlos Alberto Vilhena, afirmou que o Moradia Primeiro é um caminho inovador e, acima de tudo, humano para encarar o desafio enfrentado pela população em situação de rua. “A ideia básica do projeto é simples: para retirar as pessoas da rua, é necessário que elas tenham habitação decente, que lhes permita a reinserção social e lhes garanta o acesso a direitos essenciais, mantendo a sua dignidade”, ressaltou o subprocurador-geral da República. De acordo com dados do Instituto de Geografia e Estatística (IBGE), existem mais de 11 milhões de casas e apartamentos vazios no Brasil, enquanto 280 mil pessoas vivem em calçadas, praças e viadutos. “Esse paradoxo não pode continuar a ser naturalizado por nossa sociedade”, defendeu Vilhena.
Segundo o subprocurador, experiências do projeto nos Estados Unidos, Canadá e em diversos países da Europa apresentam resultados promissores, como a permanência dos participantes em suas novas casas em mais de 85% dos casos. Os dados comprovam que, com as pessoas instaladas em lares, fica mais fácil oferecer apoio para a retomada de uma vida autônoma. “Quem faz parte do programa apresenta menos envolvimento em delitos, resultando também em menor quantidade de internações para tratamento de transtornos mentais e de demandas para o sistema de saúde”, reforçou Vilhena. Ele acrescentou ainda que resultados semelhantes têm sido atingidos nos projetos-piloto em andamento no Brasil: em Curitiba (PR) e em Porto Alegre (RS).
O procurador federal dos Direitos do Cidadão relembrou o Dia Nacional da População em Situação de Rua, celebrado neste sábado (19). A data foi marcada pelo Massacre da Sé, em que sete pessoas em situação de rua foram brutalmente assassinadas e seis ficaram feridas enquanto dormiam na Praça da Sé, em São Paulo, em 2004. “Essas pessoas foram assassinadas e feridas simplesmente por terem a rua como moradia. Uma resposta bárbara a uma questão que pode ser resolvida por uma via civilizada e solidária”, concluiu Vilhena.
Políticas públicas – A promotora de Justiça Ana Carolina Pinto Franceschi, integrante do Grupo de Trabalho Seguridade Social e População em Situação de Rua da PFDC e moderadora do evento, destacou ações do Ministério Público do Paraná para implementação da Política Nacional para a População em Situação de Rua, criada pelo Decreto Federal 7.053/2009. “A norma é um importante passo na garantia dos direitos daqueles que se encontram à margem da sociedade”, afirmou.
A promotora citou ainda a Política Judicial de Atenção à População em Situação de Rua, criada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), e a recente decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que determinou aos estados, Distrito Federal e municípios que cumpram imediatamente as diretrizes da Política Nacional.
Apesar dos avanços, Franceschi ressaltou que ainda existem lacunas na formulação e implantação de políticas públicas fundamentais voltadas a essa população. Entre os desafios para a adoção do Moradia Primeiro estão a necessidade de treinamento de equipes, acompanhamento dos indivíduos e famílias, investimentos em aspectos legais para garantir a regulamentação dessa metodologia como política pública de Estado e, principalmente, os obstáculos para aplicação em grande escala.
Para Franceschi, além da superação da situação de rua, o Moradia Primeiro também vislumbra a inclusão social dessa população vulnerável. Nesse sentido, a promotora reforçou a importância da articulação contínua entre políticas públicas, instituições e serviços comunitários. “A moradia deve ser o local onde todas as condições para a sobrevivência humana estejam garantidas. Por meio do acesso ao direito à moradia, antes do acesso a qualquer outro serviço ou política pública, é que os problemas das pessoas em situação de rua serão de fato atenuados ou até mesmo superados”, defendeu.
Projeto no Brasil – Uma das responsáveis pela implantação do Moradia Primeiro em Curitiba, Eliane Betiato afirmou que os debates sobre o modelo começaram em 2016. “Começamos a aprofundar no estudo sobre o modelo em outros países, por meio de um grupo de trabalho. O projeto é fruto de muitas parcerias de pessoas que realmente querem buscar uma solução para essa situação grave”, explicou.
Betiato destacou relatos dos participantes do projeto. “Sabemos o quanto o Moradia Primeiro tem feito a diferença na vida dessa população. Temos relatos de pessoas que já estão em outras fases da vida. Elas relatam a importância inclusive para a sua própria sobrevivência”, afirmou. Ela ressaltou ainda a necessidade de desmistificar a ideia popular de que as pessoas vivem na rua por vontade própria. “Queremos quebrar paradigmas, superar preconceitos. Essas pessoas não estão na rua porque querem, mas por falta de oportunidades, por falta de escolha”, defendeu.
O coordenador do Moradia Primeiro em Curitiba, Tomás Melo, destacou os desafios para a expansão do projeto, como maior estrutura econômica e financiamento para ampliação do modelo no país. Ainda assim, reconheceu os excelentes resultados conquistados desde o início do projeto, em 2018. “Os nossos esforços deram frutos importantes. Realizamos eventos, produzimos cursos, promovemos seminários, publicamos o Guia Brasileiro de Moradia Primeiro. Mesmo ainda insuficientes, muitas coisas foram feitas em um período relativamente curto. Essa discussão está ganhando fôlego: passou de algo distante para uma realidade possível”, concluiu o coordenador do Moradia Primeiro.
Fonte: Ministério Público Federal