O Ministério Público Federal (MPF) e a Defensoria Pública da União (DPU) recorreram da homologação de acordo firmado entre a Vale e dois núcleos dos povos indígenas Pataxó e Pataxó Hã Hã Hãe, atingidos pelo desastre de Brumadinho (MG). O recurso aponta que o acordo não protege o direito das comunidades à reparação integral dos danos causados pelo rompimento da barragem, que impactam até hoje o cotidiano dos aldeados. O MPF e a DPU pediram a reforma da decisão judicial de homologação do acordo e apontaram que ele desconsidera a situação de vulnerabilidade social dos indígenas e é imprevisível quanto aos efeitos que acarretará.
No recurso, destinado ao Tribunal Regional Federal da 6ª Região (TRF6), sediado em Belo Horizonte (MG), MPF e DPU ressaltaram que as comunidades indígenas afetadas são partes legítimas para negociar o acordo diretamente com a Vale, conforme suas estratégias e desejos, o que decorre da inquestionável autonomia dos povos tradicionais para defender seus direitos e interesses. No entanto, ambos os órgãos defendem que o acordo não deveria ter sido integralmente homologado pela Justiça Federal em primeira instância em decorrência de preocupações e questionamentos, já apresentados anteriormente, em relação à quitação integral, irrestrita e definitiva dos danos devidos pela empresa aos atingidos pela tragédia.
“A sentença que homologou integralmente o acordo acabou por deixar de salvaguardar o direito da comunidade indígena à reparação integral pelos danos sofridos”, diz o recurso, “trazendo consigo a imprevisibilidade dos efeitos que acarretará ao grupo, desconsiderando sua vulnerabilidade social, econômica e cultural, e oferecendo-lhe um valor – não amparado no necessário diagnóstico dos danos decorrentes do desastre – em troca do seu direito à reparação integral”.
De acordo com o MPF e a DPU, os termos de compromisso assinados entre a mineradora e os grupos indígenas prevêem a renúncia total, pelos membros das comunidades, aos direitos, termos e condições estabelecidas em acordos anteriormente firmados pela empresa com o MPF e a DPU. Há inclusive um capítulo específico que prevê a quitação integral inclusive para danos futuros ainda não qualificados e nem quantificados. “É algo de todo inadequado, diante da incerteza que envolve danos tão graves como são os danos à saúde, ainda desconhecidos, mas com efeitos que podem ser até mesmo intergeracionais”, argumentam.
Diagnóstico dos danos – O MP Federal e a Defensoria questionam ainda outro ponto do acordo, que expressamente exclui das obrigações da empresa a contratação de diagnósticos, estudos e planos reparatórios dos danos causados. Segundo eles, o Termo de Ajustamento Preliminar (TAP-E) que havia sido pactuado inicialmente pela empresa, para a prestação de auxílio imediato e emergencial às famílias afetadas, previa a contratação de uma entidade independente para realizar o diagnóstico de danos e impactos sofridos pelos habitantes da região. Contudo, a Vale segue sem efetivar a contratação da entidade responsável pela realização de tais estudos.
“Apesar das muitas tratativas, permanece a recalcitrância da empresa ré em cumprir o que foi por ela mesma ajustado quando firmou o TAP-E e o segundo aditivo ao TAP-E, sem qualquer justificativa válida, sendo clara a sua mora em relação ao compromisso que assumiu”, contesta o recurso remetido ao TRF6. “Não tendo ocorrido ainda a contratação do estudo, o diagnóstico dos danos socioeconômicos encontra-se até o momento inviabilizado e, diante disso, qualquer indenização dos danos sofridos pela comunidade indígena não pode ser considerada integral, por envolver uma incontornável incerteza do que deve ser reparado”.
Invalidade parcial – Para o MPF e a DPU, a quitação integral prevista no acordo é inválida e destituída de efeitos jurídicos, até que venha a ser concluída a mensuração dos danos causados pelo rompimento da barragem. “Não há de se chancelar que a Vale se beneficie de seu próprio comportamento contraditório, nem da mora na qual até hoje se mantém”, afirmam o procurador da República Helder Magno da Silva e os defensores públicos da União João Márcio Simões e Murillo Martins. “O termo de compromisso que foi homologado em primeira instância produz validamente efeitos quanto a algumas de suas disposições, mas não a todas elas, por serem violadoras da ordem pública e da Constituição”.
Segundo argumentam, como os valores de indenização previstos no acordo são aleatórios, estabelecidos sem que se conheça a extensão dos danos, os pagamentos feitos deverão ser computados apenas como adiantamento de valores efetivamente devidos pela mineradora, sem prejuízo de novos pagamentos futuros objetivando a reparação integral dos danos, a ser apurada pelo diagnóstico.
Honorários advocatícios – O MPF e a DPU também contestam a previsão no acordo de que as próprias comunidades indígenas arquem com os custos de advogados. “O Código Civil é transparente ao dispor que os honorários de advogado hão de ser suportados pela parte inadimplente (Vale). De outro modo, não haveria reparação integral, uma vez que quem sofreu os danos ainda precisaria decotar de sua indenização uma parcela referente aos honorários de seu advogado”.
Fundo reparatório – Em outra manifestação no caso, feita em paralelo ao recurso, o MP Federal e a Defensoria requerem que seja criado um fundo reparatório para a execução de projetos nas áreas de infraestrutura, atividades produtivas, saúde, educação, meio ambiente, fortalecimento comunitário e governança, mediante o aporte de R$ 22,5 milhões pela empresa. “O pedido justifica-se em vista da necessidade de que os direitos da população atingida sejam resguardados até o trânsito em julgado do processo, de modo que o recurso que contesta somente partes do acordo não prejudique as ações reparatórias necessárias e que já possuem a concordância de todas as partes”.
Números dos Processos: 1005061-90.2022.4.06.3800 e 1003860-63.2022.4.06.3800.
Fonte: Ministério Público Federal