Fixação de parâmetros a serem considerados em decisões judiciais que afastam o sigilo de dados telemáticos no âmbito de investigações criminais. Com esse objetivo, o procurador-geral da República, Augusto Aras, apresentou ao Supremo Tribunal Federal (STF), nesta segunda-feira (18), proposta de tese sobre os limites para a medida, que é constitucional, mesmo nos casos em que alcance pessoas indeterminadas. Entre os critérios sugeridos está a obrigação de que a transferência dos dados seja feita apenas por meios formais, com garantia de sigilo e o estabelecimento de instrumentos efetivos de apuração e correção de eventuais desvios. A matéria será discutida no julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 1.301.250, que está submetido à sistemática da repercussão geral (Tema 1.148), sob relatoria da ministra Rosa Weber.
De um lado, estão as empresas de tecnologia Google Inc. e sua representante em território nacional, a Google Brasil Internet, autoras do recurso. Do outro, o estado do Rio de Janeiro que, por meio de inquérito policial, conduziu investigação sobre dois homicídios qualificados e uma tentativa de homicídio. Ao longo das apurações, a Justiça de primeira instância autorizou o afastamento de sigilo de dados telemáticos de pessoas que, em determinado período, pesquisaram informações no buscador da Google a partir de determinadas palavras-chave.
A companhia apresentou, então, mandado de segurança ao Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ) e, posteriormente, ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), tentando reverter a ordem, mas não obteve sucesso. Segundo a empresa, não existiria base constitucional e legal que sustentasse a determinação judicial para afastamento de sigilo de dados telemáticos sem a necessária individualização dos alvos. Haveria, portanto, violação dos princípios e direitos constitucionais assegurados no artigo 5º, incisos II, X e XII, da Constituição Federal, e as disposições contidas nas leis 9.296/1996 (que trata de interceptações telefônicas) e 12.965/2014 (Marco Civil da Internet), no Decreto 8.771/2016 e na Resolução CNJ 59/2008.
Ao negar o pedido da Google, o TJRJ considerou que os direitos à privacidade e ao sigilo de dados não são absolutos, podendo ser relativizados em hipóteses excepcionais, como a investigação criminal. Já o STJ apontou que a determinação judicial teve por objeto dados estáticos, cujo sigilo pode ser afastado para fins de investigação criminal ou instrução processual penal, conforme estabelecido no inciso XII do artigo 5º da Constituição Federal.
O que diz o MPF – Segundo o parecer do Ministério Público Federal (MPF), a jurisprudência do STF aponta para a existência do direito à proteção de dados, assegurado por mecanismos de salvaguarda, proteção, organização e procedimento. Essas balizas fazem parte de um microssistema jurídico protetivo dos dados e comunicações, contidos na Lei de Interceptações Telefônicas, no Marco Civil da Internet e na Lei Geral de Proteção de Dados (Lei 13.709/2018).
No entendimento do procurador-geral, descartar a priori e de forma arbitrária um meio de investigação legítimo, como a quebra do sigilo de dados telemáticos realizada sob balizas que respeitem os demais direitos fundamentais, seria medida inconstitucional. Isso se mostraria incompatível, por exemplo, com o direito à memória e à verdade das vítimas e com os deveres de investigação efetiva e punição decorrentes dos tratados de Direitos Humanos assinados pelo Brasil.
“Na realidade, mostrar-se-ia incompatível com a ordem jurídico-constitucional entendimento pelo qual fosse vedada a transferência de dados que possam contribuir para a efetivação da persecução penal e para a elucidação de crimes, sobretudo quando se sabe que tais dados hão de ter o sigilo preservado pela autoridade pública”, afirma Aras.
Por isso, o PGR aponta os critérios que harmonizem a medida excepcional – afastamento do sigilo de dados de pessoas indeterminadas por decisão judicial – com o ordenamento jurídico brasileiro. Ou seja, primeiramente, quais são os requisitos para o deferimento do acesso aos dados, de acordo com a sensibilidade da informação disponibilizada e o contexto investigativo. Além disso, discorre sobre as obrigações associadas ao acesso às informações, sobretudo aquelas ligadas à transferência, guarda e inutilização dos dados de terceiros. Aras recomenda ainda a devolução do presente processo ao TJRJ, para que o colegiado o reaprecie com as diretrizes a serem fixadas pelo Supremo.
Tese – Aras divide a proposta de tese em seis tópicos, levando em consideração a situação em que são requeridos os dados e a natureza destes (se podem identificar o usuário, por exemplo), além de questões relativas à transferência, guarda, sigilo e inutilização dos materiais obtidos, bem como a utilização dessas informações para a produção de provas.
Um ponto fundamental, destacado no último item da tese sugerida, diz respeito à impossibilidade de se instaurar procedimento criminal unicamente com os dados telemáticos obtidos, sem que haja outros indícios de materialidade e autoria. Conforme argumenta o procurador-geral, a pesquisa por palavras aleatórias na internet, por si só, não é um ato ilícito e, por isso, é insuficiente para o oferecimento da denúncia contra qualquer pessoa.
“Para o oferecimento da denúncia, mostra-se necessário, em atenção ao instituto da justa causa, corroborar os dados telemáticos obtidos a partir da decretação do afastamento do sigilo com outros indícios que apontem a ocorrência do crime e a participação do investigado no delito apurado”.
Modulação dos efeitos – Por considerar que a decisão do STF tem a capacidade de impactar investigações já realizadas em todo o país, o procurador-geral propõe a modulação dos efeitos da deliberação de modo a preservá-las. “Requer-se, desde já, que as salvaguardas eventualmente fixadas pela Suprema Corte, notadamente aquelas que não correspondam à literalidade explícita das normas hoje vigentes, sejam aplicadas apenas aos pedidos de afastamento de sigilo em curso ou futuros, possibilitando às autoridades requerentes a complementação dos pedidos, nos moldes a serem fixados pelo STF”, pontua.
Parecer – Por fim, o procurador-geral se manifesta pelo provimento parcial do recurso, com devolução do processo para reapreciação pelo tribunal de origem. E, considerados a sistemática da repercussão geral e os efeitos do julgamento deste recurso em relação aos demais casos que tratem ou venham a tratar do mesmo Tema 1.148, sugere a fixação da tese abaixo.
Proposta de Tese de Repercussão Geral – É permitido o afastamento de sigilo de dados telemáticos, no âmbito de procedimentos penais, ainda que em relação a pessoas indeterminadas, nos seguintes parâmetros:
I – Aplica-se, no tocante aos requerimentos de registros de conexão ou acesso a aplicações de internet, os requisitos previstos no art. 22 da Lei 12.965/2014 (Marco Civil da Internet): a apresentação dos fundados indícios da ocorrência do ilícito; a justificativa motivada da utilidade dos registros solicitados para fins de investigação ou instrução probatória; e a delimitação do período ao qual se referem os registros.
II – Quando os dados telemáticos solicitados forem associados a dados pessoais que possam contribuir para a identificação do usuário ou do terminal, cumpre à autoridade requerente também justificar fundamentadamente:
a) A necessidade da medida para a investigação em concreto, que há de ser subsidiária em relação a outros meios de prova menos gravosos a direitos de terceiros;
b) A pertinência das informações obtidas em relação ao fato investigado, que hão de ser especificadas no máximo possível com base em elementos identificativos e contextuais atinentes ao possível ilícito.
III – A transferência de dados às autoridades requerentes há de ocorrer unicamente por meio de comunicações formais, com garantia de sigilo, certificação do destinatário e estabelecimento de instrumentos efetivos de apuração e correção de eventuais desvios.
IV – Cumpre à autoridade requerente providenciar ao final das investigações a inutilização dos dados obtidos de terceiros que sejam desnecessários para a continuidade do processo-crime, mediante requerimento ao Juízo competente, na forma do art. 9º da Lei 9.296/1996, com a oitiva prévia dos demais interessados.
V – Incumbe aos interessados no processo-crime, sob pena de preclusão, caso pretendam a produção de prova para a qual seja imprescindível ter acesso aos dados telemáticos de terceiros coligidos nas investigações, postular sua realização até a intimação para manifestar-se sobre a inutilização dos dados, de modo fundamentado, a fim de serem preservados os elementos imprescindíveis à diligência.
VI – É necessário para o oferecimento da denúncia que o dado telemático, possivelmente aleatório, seja corroborado por outros elementos colhidos na investigação.
Íntegra da manifestação no RE 1.301.250
Fonte: Ministério Público Federal