A corrupção como facilitadora do tráfico internacional de pessoas é tema de nota técnica elaborada por Grupo de Trabalho da Câmara Criminal (2CCR) e da Câmara de Combate à Corrupção (5CCR) do Ministério Público Federal (MPF). No documento, o GT, que também conta com a participação da Secretaria de Cooperação Internacional (SCI) e da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC), sugere que seja formalizada orientação para os procuradores da República que atuam em casos de contrabando de migrantes e tráfico de pessoas, em quaisquer de suas modalidades: exploração sexual, laboral, adoção ilegal e tráfico de órgãos. O objetivo é, por meio de ações e estratégias coordenadas, auxiliar os investigadores a identificar a corrupção associada a esses delitos, cuja prática atualmente é subnotificada.
A nota técnica chama atenção para diagnóstico nacional realizado em 2019. A partir de levantamento de casos em acompanhamento pelo MPF com vínculos entre o tráfico de pessoas e a corrupção, constatou-se a inexistência de inquéritos, processos judiciais ou procedimentos extrajudiciais que abarcassem ambas as práticas delitivas. “Evidenciou-se, assim, incongruência do cenário brasileiro com as tendências criminosas identificadas pelos estudos em nível internacional, a qual constata a inviabilidade do tráfico humano, sem a influência, em algum grau, de corrupção de agentes públicos”, destaca o GT.
Também consta do documento detalhamento de como atos corruptos favorecem o tráfico de pessoas. É mencionada, como exemplo, a permissividade de funcionários públicos nos procedimentos irregulares de entrada e saída de indivíduos do país a partir de recebimentos periódicos de dinheiro ou favores sexuais. “Os agentes estatais envolvidos na ilicitude omitem deveres de vigilância e lisura, exercendo atos ímprobos, que se estendem desde o vazamento de informações sobre investigações sigilosas até a efetiva falsificação da documentação exigida no trânsito migratório. Há, ainda, a possibilidade de os próprios servidores da Administração controlarem o lucrativo negócio ilícito de contrabando de migrantes, integrando grupo criminoso transnacional”, alerta a nota técnica.
A invisibilidade desse fenômeno criminal, segundo o grupo, tem raízes na própria legislação brasileira, uma vez que o Código Penal prevê os tipos de atos corruptos, mas não há tipificação especial associada ao tráfico de pessoas. “Revela-se, portanto, imprescindível pioneirismo do Ministério Público Federal brasileiro para regulamentar aspectos desta correlação”, justifica o GT. Os procuradores que integram o grupo ressaltam, ainda, que a corrupção facilitadora do tráfico de pessoas prejudica o desenvolvimento social e a igualdade de gênero na América Latina, por afetar predominantemente mulheres e meninas.
Orientações – Diante desses fatos, a nota técnica sugere que as Câmaras do MPF orientem os procuradores da República que estejam atuando em casos envolvendo os crimes de contrabando de migrantes e tráfico de seres humanos, a trabalharem sempre com a possibilidade de favorecimentos ilícitos com práticas corruptas de agentes públicos como contrapartida. O objetivo é formalizar o trato institucional com relação às associações entre esses tipos penais.
O grupo propõe, ainda, orientações relacionadas ao crime conhecido no direito comparado como “sextorsão”. Apesar de não existir um tipo penal específico para o delito, o GT sugere que os procuradores sejam orientados a considerar a possibilidade de enquadrar as condutas de solicitar, exigir, dar, oferecer, receber ou prometer favorecimento sexual como crimes de peculato eletrônico, concussão, corrupção ativa e passiva, corrupção de testemunha, todos do Código Penal comum (artigos 313-A, 316, 317, 333 e 343), ou delito de extorsão mediante sequestro (artigo 159), do Código Penal comum, além dos crimes equivalentes do Código Penal Militar (artigos 308, 309 e 347). A ideia é que seja considerado o pagamento sexual nas expressões “vantagem indevida” e “qualquer vantagem” previstas nesses tipos penais, sem prejuízo dos crimes sexuais ou contra a liberdade sexual eventualmente incidentes.
O termo sextorsão (sextortion) foi abordado, em quadro do Interesse Público (IP), programa do MPF na TV Justiça. Vale ressaltar que o IP vai transmitir às 20h desta sexta-feira (28) entrevista sobre a nota técnica com o procurador da República e integrante do GT Paulo Roberto Santiago.
Saiba mais – O MPF brasileiro, que coordena a Rede Ibero-Americana contra a Corrupção, tem fomentado o debate sobre o tema nos fóruns internacionais dos quais participa. O objetivo é definir estratégias conjuntas de atuação com outros países para a prevenção e combate a atos de corrupção que facilitam o tráfico internacional de pessoas e a exploração sexual, sobretudo de mulheres e meninas. De acordo com a Organização das Nações Unidas, em 2018 (dado mais recente), foram notificados 50 mil casos de pessoas traficadas no mundo, sendo que de cada dez vítimas, cinco eram mulheres adultas. No entanto, em razão da subnotificação, estima-se que o número de vítimas seja muito maior, chegando a 2,5 milhões.
Em julho de 2020, os Ministérios Públicos Ibero-americanos assinaram declaração conjunta para impulsionar a luta contra a corrupção associada ao tráfico de mulheres e crianças. O documento reconhece a necessidade de aprimorar os mecanismos de investigação, a partir do mapeamento de dados sobre o tema e a adoção de ferramentas de análise criminal que esclareçam a correlação entre os dois tipos penais.
O grupo de trabalho para tratar da matéria foi criado em fevereiro deste ano e tem o objetivo de atuar de forma conjunta para identificar o vínculo entre os crimes de tráfico de pessoas e de corrupção, no intuito de desarticular as redes internacionais e punir os responsáveis.
Fonte: Ministério Público Federal